30/03/2013

.Cântico Negro (José Régio - Maria Bethânia)

Dito por Maria Bethânia

 
 
Texto:
 

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'



.Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (Camões-Rui Reininho)

Dito por Rui Reininho

 
 
Texto:
 
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
 Muda-se o ser, muda-se a confiança:
 Todo o mundo é composto de mudança,
 Tomando sempre novas qualidades.
 
 Continuamente vemos novidades,
 Diferentes em tudo da esperança:
 Do mal ficam as mágoas na lembrança,
 E do bem (se algum houve) as saudades.
 
 O tempo cobre o chão de verde manto,
 Que já coberto foi de neve fria,
 E em mim converte em choro o doce canto.
 
 E afora este mudar-se cada dia,
 Outra mudança faz de mor espanto,
 Que não se muda já como soía.
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"
 


.As palavras interditas (Eugénio de Andrade - Margarida Carvalho)

Dito por Margarida Carvalho
 
 
Texto:
 
Os navios existem, e existe o teu rosto
 encostado ao rosto dos navios.
 Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
 partem no vento, regressam nos rios.
 
 
 Na areia branca, onde o tempo começa,
 uma criança passa de costas para o mar.
 Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
 É preciso partir, é preciso ficar.
 
 Os hospitais cobrem-se de cinza.
 Ondas de sombra quebram nas esquinas.
 Amo-te... E entram pela janela
 as primeiras luzes das colinas.
 
 As palavras que te envio são interditas
 até, meu amor, pelo halo das searas;
 se alguma regressasse, nem já reconhecia
 o teu nome nas suas curvas claras.
 
 Dói-me esta água, este ar que se respira,
 dói-me esta solidão de pedra escura,
 estas mãos nocturnas onde aperto
 os meus dias quebrados na cintura.
 
 E a noite cresce apaixonadamente.
 Nas suas margens nuas, desoladas,
 cada homem tem apenas para dar
 um horizonte de cidades bombardeadas.
 
Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa”
 


.Quando vier a primavera (Fernando Pessoa - Pedro Lamares)

 Dito por Pedro Lamares:


Texto:

Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.
A realidade não precisa de mim.